No Recife, um projeto de extensão da UFPE transforma a vida de crianças e adolescentes em vulnerabilidade social

Foto: Arquivo/Projeto Acolher
A Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) nasceu, em 2004, para quebrar um paradigma e estabelecer uma missão: facilitar o acesso dos brasileiros à saúde bucal. Por décadas, a imagem dos dentistas que atuavam na rede pública esteve diretamente vinculada aos serviços odontológicos capazes de dar um fim rápido às dores - na maioria dos casos, consequência do pouco ou inexistente contato com profissionais dentistas e do desconhecimento sobre a necessidade de cuidar bem e permanentemente de tudo aquilo que compõe a boca: dentes, língua, gengivas, palato, bochechas e lábios.
Muito mais do que isso, também era necessário colocar em prática os três princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, equidade e integralidade. O acesso à saúde bucal precisava ser uma realidade para todos os cidadãos, em igualdade de condições e de modo integral. Em quase 20 anos, é possível dizer que o desafio ainda é enorme diante das desigualdades sociais que assolam o Brasil de ponta a ponta. Mas há avanços e eles são sentidos pela própria população.
Apenas para selecionar dois recortes de idade, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Bucal realizada em 2010, 47,5% dos entrevistados na faixa etária dos 12 anos disseram estar satisfeitos com a própria saúde bucal. Entre 15 e 19 anos, o percentual foi de 45%. Na última pesquisa, divulgada neste ano, mas com os dados relativos a 2023, os percentuais foram respectivamente de 57,7% e 52,7%.
Esses números estão relacionados a uma “virada de chave” promovida pelo Ministério da Saúde (MS), junto aos estados e municípios, e mostram que, sim, ainda é possível fazer mais - especialmente quanto aos grupos em situação de vulnerabilidade social. E para isso, o estado brasileiro conta com grandes parceiros, como as ONGS e universidades, que ajudam a ampliar o acesso à saúde bucal, garantir os preceitos do SUS, e transformar vidas.
Projeto Acolher
No Recife, uma dessas iniciativas transformadoras é o Projeto Acolher, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Enquanto universidade, o Acolher cumpre, há cinco anos, um dos três pilares fundamentais: a extensão, que conecta o ensino e a pesquisa desenvolvidos nas salas e laboratórios às demandas sociais. Coordenado pelas professoras Alice Kelly e Viviane Colares, do Departamento de Clínica e Odontologia Preventiva, o Acolher atua nas casas de acolhida a crianças e adolescentes na capital pernambucana.
Arquivo/Projeto Acolher
A professora Alice, coordenadora do projeto, conta que são 42 integrantes: 38 alunos de graduação e quatro de pós-graduação, sendo três do doutorado, vinculados ao programa de hebiatria e odontopediatria da Universidade de Pernambuco (UPE), e uma aluna de especialização pelo Centro de pós-graduação em Odontologia (CPGO). Além disso, outros seis professorem colaboram com as atividades.
“O Projeto Acolher desenvolve ações voltadas para saúde, especificamente para saúde bucal de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, que residem temporariamente em unidades de acolhimento na cidade de Recife. Essas ações se iniciam com o preparo teórico dos alunos em sala de aula. Durante 8 semanas, fazemos esse preparo com aulas expositivas, com o desenvolvimento de seminários, onde os alunos passam a entender o que é a realidade. Eles se preparam para desenvolver essas ações, principalmente ações educativas dentro das casas, levando informações sobre saúde bucal para as crianças e para os adolescentes. E depois nós começamos as visitas nas casas de acolhida com esse grupo. E os próprios alunos que estão no projeto há mais tempo se envolvem nessa etapa de preparação dos que estão entrando”, conta.
Com uma atuação voltada ao Recife, o Projeto Acolher atende a oito casas de acolhimento: seis geridas pela prefeitura e duas pelo governo estadual. Como cada casa possui realidades diferentes, desde a quantidade de assistidos até a disposição das faixas etárias, os grupos se dividem para atender às demandas. Por semana, ao menos uma visita é programada, o que pode variar também de acordo com a chegada de novos acolhidos ou com os horários em que eles estão disponíveis.
“Nas visitas, a gente faz essas ações educativas e algumas ações de intervenção também. Diretamente, orientações de escovação, escovação com flúor, e restaurações e aplicação de selante ART, que são técnicas que podem ser desenvolvidas fora do consultório odontológico e ajudam bastante a controlar, principalmente, a cárie”, detalha a professora.
Uma das participantes do projeto acolher é a estudante Rebekah de Paula, de 25 anos. No 9º período de odontologia da UFPE, Rebekah aponta para uma percepção adquirida ao longo das atividades de extensão.
“O projeto traz luz para uma população de que pouco se fala sobre, e foi fazendo parte, estando em contato com esses jovens, com essas crianças e adolescentes, que eu pude entender a complexidade do tratamento voltado a eles e o tanto que eles precisam de atenção, que eles precisam de cuidados específicos. Precisamos falar sobre crianças e adolescentes institucionalizadas e como nós, como futuros profissionais de saúde, podemos trabalhar com eles. Sempre que vamos às casas de acolhimento encontramos muitas crianças precisando de atenção. Daquilo que é mais singelo: a palavra, o olhar mesmo, pegar no colo, fazer uma brincadeira. O projeto vai muito além da odontologia”, declara.
Arquivo/Projeto Acolher
Para que os estudantes e professores possam visitar as casas de acolhida e também aplicar as pesquisas com as crianças e adolescentes, o projeto conta com autorização do poder judiciário e das gestões municipal e estadual. Recentemente, o Projeto Acolher foi convidado para fazer parte da iniciativa Novos Caminhos, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), voltado para os adolescentes que já estão próximos da maioridade.
Sobre os questionários aplicados, a professora Viviane Colares, vice-coordenadora do Acolher, detalha a importância de fazer mais do que ofertar os serviços odontológicos e praticar a escuta.
“Em um artigo publicado no ano passado, relatamos elevados níveis de ansiedade, depressão e estresse entre os adolescentes acolhidos, com percentuais acima de 85%, com o estresse chegando a 91%. Em outro estudo, verificamos que adolescentes em situação de acolhimento no Recife apresentaram elevada perda dentária, em torno de três vezes maior que os adolescentes de mesmo nível socioeconômico que viviam com suas famílias. A presença de cárie dentária foi cinco vezes maior entre os acolhidos. Acreditamos que a pesquisa nos fornece informações relevantes sobre as crianças e adolescentes em situação de acolhimento, o que permite melhor planejamento das ações de extensão. Assim como contribui na definição de políticas públicas mais adequadas”, detalha.
Nem sempre é fácil conseguir ouvir, e até mesmo, atender aos jovens, que podem apresentar diferentes comportamentos nas visitas dado o contexto de vulnerabilidade social. Mas todo esforço vale a pena, como destaca a doutoranda Eduarda Vasconcelos, de 33 anos.
“O projeto é essencial na vida dessas pessoas, porque ele traz esse conhecimento sobre saúde bucal, educação, higiene. Inclusive, no questionário que a gente faz na pesquisa, perguntamos: onde você ouviu falar sobre saúde bucal? Sobre higienização? Sobre escovação? E muitos dizem: em canto nenhum, só com vocês aqui. Então, percebemos o quanto que é importante, mesmo sendo um trabalho de formiguinha, mas o quanto que somos importantes na vida dessas pessoas que são negligenciadas. Porque, como dentista, a gente não olha só o dente, a gente olha a saúde geral”, pontua.
Hoje, o Recife conta com 482 profissionais da área de saúde bucal, atuando em 325 equipes (eSB), segundo a gestão municipal. A busca por investimentos no reforço de pessoal e na requalificação de estruturas físicas nas unidades de saúde, com a implantação de novos consultórios odontológicos, fez com que o município chegasse a uma cobertura em saúde bucal de 70% do território.
E para aqueles que não têm a oportunidade de ir a uma Unidade de Saúde da Família (USF), e destacadamente, estão em situação de vulnerabilidade social, como as crianças e adolescentes assistidos pelas casas de acolhida, ter projetos atuantes como o Acolher faz toda diferença. Como disse Eduarda, um dentista não olha somente o dente. E por meio dele, a sociedade pode se atentar para o fato de que esses jovens - que vivem verdadeiros dilemas familiares - não podem ser deixados no meio do caminho, como reforça a professora Alice Kelly.
“A sociedade, de uma maneira geral, não tem ideia de onde estão essas crianças que são retiradas das suas casas, dos seus lares, por alguma situação de violência. Elas são retiradas pelo poder judiciário temporariamente, cerca de um ano e meio, e passam esse período nas casas de acolhida. A população ainda tem essa a ideia de orfanato, que não existe mais. E quando esses estudantes passam a conhecer essa realidade, é um impacto na formação”, conta.
Mas não apenas na formação acadêmica: o impacto do Projeto Acolher se dá na construção de seres humanos que atuarão, na ponta, dando a vida para cuidar de gente. Para o Sistema Único de Saúde (SUS), uma determinação. Para os jovens profissionais dentistas, uma missão.
Este segundo episódio da série de reportagens Extensão dos Sorrisos contou com edição de Daniele Monteiro, sonorização de Lucas Barbosa, produção de Letícia Rodrigues e Maria Luna, e locução de Lucas Arruda.
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